01 junho 2012

POSFÁCIO DE CARTA AO PAI


Posfácio
Por Modesto Carone
SOBRE A "CARTA AO PAI"
Franz Kafka escreveu a Carta ao Pai (Brief an den Vater) em novembro de 1919, aos 36 anos de idade. Não deixa de ser surpreendente que o escritor, cinco anos antes de morrer, tenha decidido investir tanta energia num acerto de contas com o pai despótico. A surpresa aumenta quando se recorda que, a essa altura da vida, ele já era o autor maduro de algumas obras-primas da prosa universal, como A Metamorfose e O Processo. Nesse aspecto também é intrigante a motivação profunda que o leva, guiado por circunstâncias externas (como a desaprovação do pai ao seu terceiro e último projeto de casamento), a dar expressão pessoal direta a um tema que - nas suas próprias palavras - já havia transformado em substância literária. Leia-se o trecho da cana em que afirma ao pai: "Meus escritos tratavam de você, neles eu expunha as queixas que não podia fazer no seu peito''. Sabe-se que esta frase cortante tem amaciado as dificuldades da crítica biográfica, que nela costuma pinçar, com júbilo apressado, a via real de acesso ao conjunto da obra kafkiana. Evidentemente os resultados desses estudos são insatisfatórios, pois em geral não conseguem acompanhar o impulso de generalização da forma estética - obviedade que num artista consciente como Kafka merece muita atenção. Seja como for, entretanto, fica difícil, diante da Carta, fugir à consideração de que ela tem um fundamento histórico e existencial concreto e de que, com cautela e mediações, o documento pode ser lido não apenas como curiosidade pessoal e psicanalítica, mas também como explicitação de uma dedicatória ou direção da obra no seu todo; pois é comprovável que, em última instância, a ficção de Kafka passa pela figura do pai e do tirano para chegar à falta de liberdade objetiva do mundo administrado. Não é sem razão que Walter Benjamin, num ensaio de 1934 sobre Kafka, vê irmanados na sua obra pais e burocratas: ''O pai - diz Benjamin - é a figura que pune. A culpa o atrai, como atrai os funcionários da Justiça. Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e o mundo dos pais são idênticos em Kafka. Essa semelhança não os honra. Ela é feita de estupidez, degradação e imundície''[1] próprio Kafka, aliás, não deixa por menos quando, na análise fina e feroz que faz do pai, diz ao self-made man Hermann Kafka, projeção do patriarca expressionista: "Da sua poltrona você regia o mundo. Sua opinião era certa, todas as outras disparatadas, extravagantes (...) Você assumia o que há de enigmático em todos os tiranos, cujo direito está fundado não no pensamento, mas na própria Pessoa''. Diante disso, é negligência não lembrar das autoridades intangíveis e arbitrárias que infernam a vida de Joseph K. em O Processo, dos Klamm e Momus que minam, com desdém ou chicana, a segurança e a identidade de K. em O Castelo, do pai vingativo que condena Georg Bendemann à morte por afogamento em O Veredicto, ou do famoso Pai Samsa que vai aniquilando, com bengaladas, bombardeio de maçãs e confinamento, a triste esperança de Gregor na sua sobrevivência como inseto. (Por sinal que a palavra-chave Ungeziefer, inseto daninho, designação dada por Kafka ao herói de A Metamorfose, aparece duas vezes na Carta, proferida pelo pai.) Não bastasse isso, vigoram nas relações reais entre pai e filho, tematizadas na Carta, o desmando da lei especial que informa a parábola "Diante da Lei " (núcleo de significado do romance O Processo), o delírio persecutório e o medo da destruição que atormentam o bicho-narrador de A Construção, o sentimento de vergonha que preside à morte de Joseph K. e a segregação final de Um Artista da Fome. Sem necessidade de forçar a nota, as analogias podem ser ampliadas, sobretudo a concorrência de perseguição, culpa e malogro, que assola o remetente da carta e os protagonistas da obra. Mas é por intermédio da extraordinária imagem do pai estendido sobre o mapa-múndi que Kafka consegue figurar na Carta tanto a falta de espaço do filho oprimido quanto a violência sem fronteiras da dominação. Diante de uma metáfora tão poderosa, talvez não seja descabido lembrar, neste posfácio, duas observações feitas por Adorno, uma sobre o próprio Kafka, a outra de ordem mais geral. A primeira diz o seguinte: ''A origem social do indivíduo revela-se no final como a força que o aniquila. A obra de Kafka é uma tentativa de absorvê-la''. A segunda afirma que, quando alguém mergulha em si mesmo, não encontra uma personalidade autônoma, desvinculada de momentos sociais, mas sim as marcas de sofrimento do mundo alienado.
Transformado pelo pai em filho deste século, Kafka deu o passo adiante, próprio do artista, e se tornou um poeta (crítico) da alienação. Não é pouco para quem se considerava um fracasso.
* * *
Como foi dito, Kafka escreveu a Carta ao Pai em novembro de 1919. Tinha pouco mais de 36 anos de idade e nesse mês estava hospedado, para tratamento de saúde, na pensão Stüdl, de Schelesen, pequena localidade situada ao norte de Praga. O pretexto imediato para a elaboração da ''carta-gigante'' (Riesenbrief, como o escritor certa vez a descreveu para Milena Jesenská) foi uma pergunta feita pouco tempo antes por Hermann Kafka, que queria saber por que o filho afirmava ter medo dele. A carta de fato começa com uma frase assim, mas o móvel principal foi certamente o estremecimento das relações entre pai e filho em torno da tentativa (logo abandonada) de casamento de Kafka com Julie Wohryzek, filha de Eduard Wohryzek, sapateiro e zelador de sinagoga num subúrbio de Praga. O escritor tinha conhecido Julie naquele mesmo ano em Schelesen, e o repúdio da moça por parte de Hermann Kafka (que a desqualificou como noiva sobretudo por sua condição social, inferior à dos Kafka) provocou uma discussão movimentada com o filho. Foi nesse clima de rompimento que Kafka confabulou com a irmã predileta Ottla e decidiu escrever a carta. Esta deveria ser enviada a Hermann Kafka ainda durante a estada do escritor em Schelesen: o objetivo manifesto era menos um desagravo do que uma tentativa de desanuviar o relacionamento tenso com o pai. Evidentemente nada disso aconteceu, em primeiro lugar porque - dado o tamanho da carta Kafka chegou ao fim da sua licença de saúde em Schelesen sem tê-la terminado (só acabou de escrevê-la em Praga) e em segundo porque ela nunca foi entregue ao pai. Foi só no fim de novembro de 1919 que bateu o texto à máquina (provavelmente na repartição onde trabalhava, em Praga), deixando, por algum motivo, a última página escrita à mão. Os comentadores acham que Kafka não entregou a carta seja porque Ottla e a mãe - que seguramente a leram - desaconselharam o seu envio ao pai, seja porque o próprio escritor pôs em dúvida o sentido do empreendimento (provavelmente diante da auto-imagem problemática que o texto constrói), desistindo do ato final. De qualquer modo, durante o ano de 1920, Kafka ainda pensava em remetê-la ao pai, conforme demonstra sua correspondência com Milena, que, ao que tudo indica, teve acesso à carta num dos encontros com o escritor na rota Viena Praga.[2]
Foi Max Brod que, na sua biografia de Kafka de 1937, citou pela primeira vez várias passagens do texto; mas, ao que parece por consideração pela família, hesitou em publicá-la na íntegra até 1950, quando então incluiu a Carta ao Pai (o título é dele) nas ''Obras Reunidas'' do autor. É um fato curioso a indecisão de Brod quanto ao lugar onde deveria situá-la no conjunto da obra. Finalmente decidiu incorporá-la à obra literária de Kafka, embora sempre tenha insistido no seu caráter de carta particular. De certa forma esses escrúpulos se refletem na fortuna crítica da Carta, onde os estudos dedicados a ela vão desde o ensaio biográfico e psicanalítico até as reflexões sócio-históricas, passando também pelas análises imanentes de texto, que analisam a linguagem, o modo de composição, o personagem-autor e o personagem-destinatário como partes integrantes de uma obra literária tout court.[3]
Quanto à tradução, vale a pena dizer que ela procurou, dentro do possível, reproduzir o timbre estilístico do original, marcado sobretudo pela frase lapidar, em que a firmeza do enunciado se alia à preocupação obsessiva com o recorte das nuanças. Nesse sentido evitou-se, principalmente, segmentar o período longo, aqui muito freqüente, na tentativa de conservar a tensão dialética do texto, que se articula no avanço e retomada dos temas, no processo de acumulação que não recua diante das repetições, nas constantes viradas de sentido no curso das sentenças e no embate permanente entre os pronomes “eu” e “você'', atores do drama retratado na Carta e cuja reiteração não Pôde ser elidida sob pena de obscurecer o desenho da argumentação. Seguindo esse mesmo rumo, foram traduzidas com insistência as partículas de preenchimento em que é' Pródiga a prosa de Kafka, uma vez que a faxina desse recheio (de resto natural em alemão) substituiria o caráter eriçado de uma dicção intencionalmente superdeterminada por um “embelezamento” injustificado.
O tradutor agradece a Roberto Schwarz os comentários gerais sobre a primeira versão deste trabalho, bem como os esclarecimentos sobre várias falas de cunho fortemente coloquial; a Boris Schnaiderman, a leitura atenta e generosa e as sugestões para o texto final; a Luiz Meyer, as explicações sobre termos religiosos contidos na Carta, e a Marilene Carone a revisão geral da tradução.


[1] A tradução é de Sérgio Paulo Rouanet, in: Walter Benjamin, Obras Escolhidas, vol. l, Brasiliense, 1985, p. 130.

[2] Cf. Hartmut Binder (org.), Kafka-Handbuch, vol. 2, Kröner, Stuttgart, 1979, pp. 579 e segs.
[3] Christoph Stölzl fez uma resenha competente dessas análises, in Hartmut Binder, op. cit., pp. 519-539.
Modesto Carone

Um comentário:

Unknown disse...

Olá. Vocês já conhecem a “Carta ao Filho”, de Sylvio Massa??? É a resposta de Herrmann Kafka para seu filho Franz Kakfa, construída pelo auto, através da redescoberta da personalidade de Franz. A relação com o pai ganha um olhar que ajuda a compreender muito da personalidade de um dos autores mais controversos da literatura moderna. É fascinantemente imperdível!!!
Quem tiver interesse em conhecer melhor o livro ou adquirir um exemplar, pode entrar em contato através do email: editoraaltadena@altadena.com.br